sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Síndrome do Primeiro Eu

Meu trabalho me proporcionou a oportunidade de viver em vários locais diferentes ao longo de minha carreira, e isso me fez de uma certa forma me sentir sempre como um forasteiro.
Nessa condição, foi muito difícil evitar pensamentos críticos com relação a tudo e a todos nos locais onde vivi e, portanto, não eram raros os monólogos internos do tipo: “essas coisas só acontecem por aqui”, e “mas como esse povo daqui é...” Enfim, aquele entendimento pouco refletido de que determinados vícios, maus comportamentos e atitudes inadequadas só aconteciam “ali”.
Mas o mais estranho se deu quando um dia, em viagem à minha cidade natal, me dei conta de que as coisas e as pessoas por lá também não eram mais da forma como eu as tinha guardado em minhas lembranças, ou talvez seja melhor admitir, as tenha idealizado.
O que de fato aconteceu foi que perdi a referência a partir da qual aprendi a me reconhecer socialmente, e a estabelecer o meu melhor padrão de comportamento em relação às outras pessoas, seja na rua, no supermercado, no banco, na praça, enfim, nos espaços coletivos. Pior ainda, constatei que em minha cidade natal também aconteciam os mesmos vícios e os mesmos maus comportamentos de todas as outras, nas quais eu tinha vivido até então. Foi como se eu tivesse sido traído, afinal, minhas origens eram sempre as minhas referências positivas, e a melhor cidade do mundo foi sempre a “minha cidade”.
Claro que continuo tendo as mesmas ligações afetivas e as mesmas identificações pessoais por lá, mas aquela idéia de "local perfeito” sublimou.
Na verdade, do que me dei conta mesmo, foi de que aquela atitude respeitosa para com os outros, aquela preocupação em querer agir de forma a não prejudicar o direito e nem invadir o espaço alheio, aquela predisposição em buscar o equilíbrio na relação com vizinhos, amigos, colegas, ou mesmo com os desconhecidos com quem compartilhamos a fila da bilheteria do cinema, por exemplo, não se perdeu na minha cidade natal. Ela se perdeu no tempo, e parece que está a cada dia mais distante, esquecida no passado.
O que define o comportamento social de hoje é uma atitude que eu costumo chamar ultimamente de “Primeiro Eu”. É “Primeiro Eu” no trânsito, na hora de entrar no elevador, no desrespeito à forma mais simples e democrática de organização coletiva: a nossa velha e conhecida fila.
O que há com as pessoas?
De onde vem tanta individualidade?
Será egoísmo consciente, intolerância, ou ignorância social?
Quando se trata de querer ilustrar essa questão, acho que o trânsito é uma das melhores escolhas. Esse espaço coletivo, no qual nossas competências cidadãs são exigidas com maior intensidade é um exemplo do quão degradado está o comportamento social de nossa época.
De que forma as pessoas se comportam no trânsito de sua cidade?
Há quanto tempo alguém lhe fez uma gentileza do tipo, dar preferência de passagem?
E quando isso aconteceu, você agradeceu?
Ultrapassagens pelo acostamento são comuns?
E tentativas de passar a todos criando atalhos por entre postos de gasolina e estacionamentos?
E as vagas de estacionamento para idosos e deficientes, quem as utiliza?
Isso tudo é comum em sua cidade?
O que acontece quando você insiste em ser um motorista consciente e sinaliza com o pisca-pisca (também chamado de sinal, ou seta em algumas regiões do país)a sua intenção de mudar de pista para realizar uma ultrapassagem?
Por acaso, aquele carro que estava lá atrás inesperadamente cresce em seu retrovisor tirando-lhe qualquer chance de levar à frente o seu plano de manobra?
Ciente disso, atualmente, e não raro, costumo brincar com esta situação e me utilizo deste expediente justamente para fazer com que aquele mesmo carro que estava lá atrás mude de posição. É isso mesmo. Aciono o pisca-pisca só para velo acelerar “ao meu comando”. É uma espécie assim de teste de confirmação diária da Síndrome.
Imagino o que passa pela cabeça desses motoristas: Se minha intenção original é gentilmente pedir-lhes passagem; da parte deles acho que devem achar que isso é uma espécie de afronta, não? Imagino que devam falar para si próprios: “Quem ele acha que é para passar em minha frente?”.
...É o “Primeiro Eu” em ação!!!
E quando você já está no limite de velocidade permitido na via, e aqueles faróis se aproximam numa velocidade incrível de sua traseira, como se fosse um trem disposto a passar por cima de você?
Melhor ainda é quando, não satisfeito, o motorista ainda pisca sem parar com os faróis alternando luz alta e baixa.
Durante muitos anos dirigi em estradas no caminho entre minha casa e o trabalho, e sempre voltava à noite. Nessa época, nunca tive problemas para ultrapassar os enormes e muitos caminhões que várias vezes se colocavam em meu caminho. Sempre me utilizei daquela que considero a forma mais civilizada de pedir passagem no trânsito, e que aprendi justamente com eles: os caminhoneiros. Bem, pelo menos “os da antiga”.
Aproximava-me da traseira do caminhão com calma e tranquilidade, mantendo sempre a distância de segurança, reduzia (ao invés de aumentar) a luz dos faróis, alternando entre a luz baixa e as luzes de sinalização (a sinaleira, como é chamada em alguns locais do nosso país) e por alguns segundos sinalizava com o pisca-pisca à esquerda. Depois disso, apenas esperava. Nunca falhava. Sempre me davam passagem. E não raro, quando eu estava com meu carro passando ao lado de sua cabine sinalizavam com dois toques curtos na buzina, como num gesto de agradecimento. Isso mesmo: agradecimento. Afinal, gentileza se responde com gentileza.
Era uma sensação muito boa.
Isso é uma daquelas coisas agradáveis que lembram os velhos tempos. Era como pedir licença à moda antiga, e receber um “pois não” acompanhado de um sorriso. Relação baseada em respeito e consideração.
Pergunto-me se os motoristas de hoje conhecem esse procedimento...
Mas é claro que o “Primeiro Eu” não se limita ao trânsito, ele está no convívio das crianças na escola, nas areias das praias, na mesa dos bares e restaurantes. Ele se dá em toda parte.
E você já viveu uma situação dessas?
Do lado de lá, ou de cá?
Refletir sobre nossos atos nunca é demais.


Leia também: 
http://delas.ig.com.br/comportamento/por+que+viramos+monstros+no+transito/n1597079006321.html
http://www.vidaecarreira.com.br/dicas/so-pelo-prazer-consequencias-de-uma-sociedade-hedonista-e-narcisista/#comment-241964 

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